17 de agosto de 2013

A Morte e a Donzela

Fonte: Getty Images
Esses dias, algo me chamou a atenção. Morria Margaret Tatcher, chamada de Dama de Ferro pelos britânicos. Margaret foi Primeira-Ministra da Inglaterra por anos, e, com a mesma intensidade com que foi amada, foi igualmente odiada. Ela foi o símbolo máximo de poder, para o bem e para o mal.

Desenvolveu políticas ultraconservadoras e polêmicas. A classe baixa saiu perdendo em muitos momentos (não, não é só aqui que isso ocorre!), e teve seu ápice de poder, amor e ódio na Guerra das Malvinas, onde mandou explodir um navio argentino que estava fora da área pertencente à Inglaterra. História à parte, o que me chamou a atenção não foi sua morte em si (isso também, mas falarei mais adiante), mas foi a maneira como o mundo recebeu a notícia.

Confesso que achei até discreta sua partida para quem representou tanto amor e ódio. Mas a reação foi essa mesma: estava com idade avançada e com demência. Li textos com chamadas como: morreu com o que sempre teve: demência. Ou coisas como: já vai tarde, e seus derivados.

Ao acompanhar os últimos anos de Tatcher (porque ela nunca deixou de ser notícia), há um indício de pena. Pena sim. Há discussões diversas sobre ela ter sido uma grande líder ou uma pessoa detestável, fria e calculista. Não tenho embasamentos profundos para tomar partidos, mas foi a ideia de pena que me chamou a atenção.

Uma senhora, senil, demente, com várias dificuldades físicas e mentais. Podemos dizer: coitada. Mas vi uma foto tirada meses antes, no qual Tatcher mira a câmera no exato instante do clique e eis que há, nítido, o olhar daquela que foi temida e respeitada. O olhar penetrante. O mesmo olhar com que enfrentou tudo e todos com uma teimosia desastrosa e doentia. Aquele olhar... aquele olhar... e ai pensei em Cazuza quando cantava: “Meus heróis morreram de overdose... os meus inimigos, estão no poder!”. Cazuza veio a calhar pois pensei no “inimigos”. Aqueles contra quem lutamos, brigamos, exigimos justiça... esses são liderados pelos mesmos homens que foram prejudicados anteriormente. E, por quê? Porque temos essa sensação de pena, que já estão velhos, doentes, dementes, que não vale a pena remexer em crimes antigos. O que acontece em Vegas, fica em Vegas, não é mesmo? Mas não, é preciso se fazer justiça sim, e exigir que os crimes sejam pagos.

Mas não. Não fazemos isso. Não fazemos porque somos tomados por essa sensação de descuido com nossa História e nossa memória. Somos displicentes com todas as coisas que nos ocorrem seja a política, seja a saúde, seja o Planeta e adjacências. E quer saber? Ela estava tão velhinha mesmo!

Morrissey, brilhante cantor, ex líder do The Smiths, era um opositor ferrenho de Tatcher. E foi dele, figura mítica na música inglesa (e mundial), a manifestação mais elegante sobre a morte de Tatcher. Seu texto não redime Tatcher e nem contraria toda a postura do artista sobre a “ditadora”, mas expressa esse mesmo sentimento de pena. Morrissey afirma: “Tatcher não tinha nem um átomo de humanidade”, ele não diz “Viva” para sua morte. Ele lamenta, lamenta pelas injustiças que foram enterradas juntas, ele lamenta as dores sofridas enterradas juntas, ele lamenta toda uma geração de crianças, jovens, pais, avós que perderam esperanças, que foram prejudicados, que morreram sem ter um resquício de sol na gelada Inglaterra. Ele lamenta o que se foi antes da partida dela. Ele lamenta toda essa angústia guardada desde os tempos em que pensávamos que poderíamos mudar o mundo.

O que dá pena, o que lamenta Morrissey, e o que eu lamento agora, é isso. Perceber que, independente de tudo o que foi feito, chorado e lutado, os inimigos morrem dementes, e as dores são foram aplacadas. Sensação de injustiça, não com eles, mas conosco. Os que ficaram? Não terão mais com quem lutar. Mas levarão consigo o mal que foi deixado. Há como se redimir ou se libertar?

Este texto pode parecer ambíguo. E é essa a intenção. Ambíguo ao ver a velha senhora demente. Ambíguo ao ver que seu olhar continuava o mesmo de décadas. Penetrante e amedrontador. Pena ou medo? O tempo pode realmente aplacar certas dores?

E a cova? Sete palmos pode não ser o suficiente. Nunca é.

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